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Larissa Oliveira
Sergipana e professora bilíngue, admira os mais diversos tipos de arte e já teve seu momento Twin Peaks, além de epifania ao ler o romance que dá nome a este blog, A Redoma de Vidro de Sylvia Plath. Este Blog nasceu em 2014 e é dedicado a críticas de filmes, livros, séries e música, sendo que as dos três primeiros contêm spoilers. Boa leitura!

Crítica: Cet obscur objet du désir (1977)



É possível notar a sagacidade do diretor espanhol Luis Buñuel nota-se em todas suas facetas cinematográficas. A associação que fez delas em sua fase francesa destaca-se como o ponto mais alto de sua carreira. Não há dúvida que ao lado de O Fantasma da Liberdade (1974), Esse Obscuro Objeto do Desejo, é o filme decisivo para estabelecer sua marca como o enfant terrible da crítica à sociedade burguesa. Se a exploração repetitiva da temática não agrada alguns, para outros, inclusive para mim, torna-se mais prazerosa e distintivamente interessante a cada filme. Seu pôster oficial já indica a proposta controversa do cineasta. A boca costurada tanto simboliza o imposto silêncio feminino no tocante à sua sexualidade quanto, ainda na mesma ideia, a proteção de seu órgão genital. As ambiguidades que ocorrem em seus filmes não são explicadas, o que fomenta diversas interpretações, muitas vezes ligadas ao surrealismo do diretor.
 O filme se inicia com a viagem do senhor viúvo e abastado Mathieu em um trem a caminho de Paris. Dividindo a sua cabine com pessoas um tanto excêntricas, o ambiente se torna favorável a um flashback nas suas memórias de mesmo teor. O protagonista, como habitual nos longas de Buñuel, faz parte da alta sociedade francesa e por mais que desfrute dos gostos refinados, há dentro dele um desejo pecaminoso e imoral que o cineasta sabe explorar de forma única. Antes de sentar-se ao lado de seus novos companheiros, os mesmos surpreendem-se ao vê-lo jogar um balde de água fria numa mulher. São suas memórias ao lado dela que Mathieu compartilha durante a viagem.
Vivendo apenas com um mordomo visivelmente submisso, uma aparente crítica à indiferença de classes, o cotidiano de Mathieu muda com a chegada da empregada espanhola, Conchita. A natural sensualidade e jovialidade da garota desperta um desejo incontrolável em Mathieu, que agindo de acordo com os costumes tradicionais, sugere bancar ela e sua mãe em troca da sua mão em casamento. O que o anacrônico personagem não esperava é que Conchita o desejava por motivos diferentes. O controle de si mesma não é algo que Mathieu entende. Sua escolha em ter um relacionamento sem sexo é algo inaceitável no seu mundo.




A fim de adentrar mais a fundo e perversamente nas fantasias do protagonista, Buñuel aposta na escolha de duas atrizes para interpretar Conchita. Ambas representam as diferentes personalidades da garota, o que confunde e inferniza gradativamente a vida frívola de Mathieu. A interpretada por Carole Bouquet, apresenta uma feição mais suave e comedida. Já a Cochita de Angela Molina, transpira volúpia e mistério. Portanto, a escolha de duas atrizes para o mesmo papel evidencia a mulher multifacetada pós movimento feminista da década anterior. Aquela que não se encaixa mais em um só plano restrito e padronizado. Mas o que é uma mulher independente senão um risco à virilidade masculina? Melhor, e se além disso, ela decide se manter virgem por escolha própria? Tal aspecto em Conchita causa estranheza no espectador que não entende seus jogos de sedução e consequente reclusão. 
A guerra sexual entre os dois se entrelaça com os ataques terroristas cometidos na França naquela época. Quando Conchita e Mathieu mudam-se para sua casa de campo e passam a primeira noite juntos, uma explosão ocorre nas redondezas. A banalidade da violência é notada em uma parte do longa quando Mathieu alega que o grupo responsável pelos ataques se chama ''Grupo Armado Revolucionário do Menino Jesus'', configurando além de uma sátira à violência, à religião. 



No auge do teor sádico do filme, Conchita simula um ato sexual com seu amigo do lado de dentro da casa que Mathieu lhe comprou. Mais tarde, ela revela que o falso ato era apenas uma forma de testar o amor entre os dois. Ele a responde com uma bofetada e decide abandoná-la, levando à cena inicial do trem. Após terminar de contar a história, Conchita reaparece no trem e retribui o  balde de água jogado nela, provando que ambos se igualam no campo da hipocrisia. Se por um lado, Conchita é dona de si, por outro, ela subjuga sua liberdade para alimentar um desejo burguês de submissão e domínio. 


É impossível não lembrar do filme de 1992 de Polanski, Lua de Fel, em que o casal protagonista também testa os limites lascivos de sua relação doentia. Mathieu e Conchita se reconciliam ainda no trem e um tempo depois, ao passarem por uma vitrine de uma loja, Mathieu se vislumbra com uma mulher costurando um pano sujo de sangue, revelando talvez, a perda da virgindade de Conchita. Esse Obscuro Objeto do Desejo explora de forma sátira a subversão moral e sexual burguesa. A paixão doentia entre o casal sinaliza a ideia de posse, que trespassa os limites estruturalmente estabelecidos. Luis Buñuel não é apenas meu diretor favorito por conta de sua versatilidade, mas também por arquitetar um cenário em que o bizarro não é o acaso e sim uma realidade muito próxima,mas que só é possível de se constatar com um balde de água fria no imaginário inerte do espectador.

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